A crise e o medo de mudar
O Presidente da República de Portugal, Cavaco Silva, fez hoje uma advertência nada romântica ao Governo, sobre as consequências da crise económica para o futuro do país. Numa surpreendente mudança de postura presidencial, Cavaco alertou para a necessidade de se definir prioridades no enfrentamento da crise e os comentadores de economia na imprensa "descodificam" o discurso do presidente como uma preocupação com a probabibilidade de não haver dinheiro para investir na retomada do crescimento econômico. A possibilidade de as medidas tomadas este ano não funcionarem como solução não é pensável sequer, e as preocupações já alcançam o próximo ano, que Cavaco Silva, entretanto, acredita que será bem melhor do que este, que mal começou.
O tom usado pelo presidente português parece dar a entender que alguém ainda não acordou para a gravidade da situação, no mesmo dia em que os socialistas reelegem presidente do partido do Governo o Primeiro Ministro José Sócrates, que discursa sobre a crise e fala da Educação como prioridade para a recuperação de Portugal para o futuro. Relança ainda ao país a polêmica questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto opiniões contrárias consideram a questão como uma distração dos problemas prioritários, e ele rebate essas e outras resistências falando sobre o medo de mudar. Mário Soares, o lendário socialista, que também havia se manifestado sobre o casamento gay com alguma rejeição, ainda não comentou o discurso de Sócrates e nem reagiu ao alerta do atual Presidente da República.
O medo de mudar é uma característica comum à maioria dos portugueses, que atinge o meio político, pressionado sempre entre a militância esclarecida da classe média, que vê o país a andar sempre atrás dos parâmetros europeus, e a maioria dos eleitores, que vota e determina a sobrevivência da classe política, tem consciência de que vive abaixo dos padrões europeus, mas reage mal às mudanças, por medo de que tudo venha a piorar. A pior crise pode ser esta, a da falta de autoconfiança, que pode ter outras crises como razão de fundo.
Sobre crise e mudanças, fala-se a mais em economês e politiquês, e a impressão que dá, quando os portugueses conversam sobre a realidade do país, é de que estão pouco esclarecidos, apesar da saturação informativa, sobre a crise e sobre o papel de cada um diante da mesma. A noção que a maioria do eleitorado tem da crise se manifesta ainda primariamente, apenas ao nível do desemprego sentido, dos preços, do fechamento das empresas e das demissões em massa, que assistem pela televisão todos os dias, sem entenderem o porquê de não haver um culpado, ou com preocupação mais focada em entender as culpas, do que em participar da recuperação do país, com algo mais do que a paciência para esperar e alguma reserva para "queimar". A crise, na visão da maioria das pessoas comuns com quem converso, ainda é um bocado como o mau tempo, que passará, mal passe o tempo dela. A relação entre o eleitor e o "meio político" é sentimental, um misto de desconfiança nos políticos e excesso de confiança no Estado.
O presidente português e o atual Primeiro Ministro vêm de partidos diferentes, mas nos discursos de hoje, contemplam necessidades urgentes e que só são incompatíveis do ponto de vista eleitoreiro. O Governo precisa perceber a gravidade da crise e definir prioridades. Mas precisa informar e envolver a população nas soluções, falar claramente de participação e de sacrifício, levar o esclarecimento sobre a crise, em bom português, para as escolas, por exemplo. Mesmo com o risco de uma reação eleitoral contrária. Afinal, no que mais as coisas poderão piorar? Para identificar ou partlhar culpas, para que o fenômeno em si seja entendido, no contexto histórico e político, e para que cada um possa assumir a sua parcela de responsabilidade pelos atrasos do país. É preciso que pelo menos se tente que o medo de mudar seja isolado, para que o Primeiro Ministro deixe de parecer o representante de uma maioria silenciosa. E para que o alerta de um Presidente da República não cale como um discurso de choque, que perde o impacto no dia seguinte. Cavaco Silva está mudando e todos podem mudar.
"Os donos do capital vão estimular a classe trabalhadora a comprar bens caros, casas e tecnologia, fazendo-os dever cada vez mais, até que se torne insuportável. O débito não pago levará os bancos à falência, que terão que ser nacionalizados pelo Estado".
Karl Marx, Das Kapital, 1867
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