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sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Novelas brasileiras em Portugal, cenas do próximo capítulo

Posso dizer, sem risco de exagerar, que as telenovelas são a ligação mais importante de sempre entre portugueses e brasileiros. A dramaturgia brasileira tem sido, desde Gabriela, um chamariz sobre a paisagem brasileira, o jeito, o sotaque, a música e o calor brasileiros. Em quase 20 anos de Portugal, só conheci dois portugueses que tinham horror disto tudo, por puro preconceito nacionalista, por isso não merecem ser lembrados. Os restantes mais que conheço, são todos fascinados pelo Brasil por causa das telenovelas ou por estas por causa do Brasil. Aliás, as duas coisas que os portugueses mais têm aprendido com os brasileiros e sobre o Brasil são: fazer telenovelas e falar à brasileira. Já há até uma personagem na versão Floribella em Portugal, interpretada por um actor português com sotaque brasileiro, embora a trama ainda não tenha revelado se de facto se trata de um brasileiro. A imitação de um carioquês misturado com baiano, com excesso de gírias no texto, soa mal demais, caricato que se farta, mas vale a intenção.

Quando cheguei a Portugal as pessoas ainda riam quando os meus filhos falavam “a gente vai sair”, “a gente sabe”, em vez de “nós vamos sair”. Ou quando batiam no banheiro – casa de banho - e eles respondiam “tem gente”, ao invés de “há gente”. Hoje nem por isso e o “nem por isso” eu aprendi com eles. Das telenovelas já não se diz por aqui que mostram só o lado bonito do Brasil, que escondem a verdadeira vida do brasileiro, etc. Já se reconhece que são informativas e até educativas. E dão verdadeiras aulas de cidadania. Estou a repetir “falas” de telespectadores portugueses. Eles até já sabem criticar o final das telenovelas, tal qual os brasileiros, até já observam as gafes. E mais, acompanharam que, pela primeira vez, em todos os tempos, os brasileiros fizeram a TV Globo alterar o final de uma telenovela, depois de emitido, antes da tradicional repetição do último capítulo, no Sábado. Aconteceu com Paraíso Tropical, a novela mais confusa de Gilberto Braga, apesar do final shakespeariano para algumas personagens merecer destaque.

Os portugueses ainda não escrevem telenovelas como o Gilberto Braga ou o Manoel Carlos - entre os melhores autores da Globo. Mas já aprenderam com os brasileiros a adaptar, realizar e representar textos originais de outros países, com argumentos adaptáveis a qualquer cena urbana ou semi-rural. Há roteiros - guiões - que são formatados para serem adaptados a qualquer país ou cidade. Floribella, Jura, Vingança, e agora Resistirei são conteúdos que apostam num perfil comum de público em qualquer língua. Conteúdos associados ao género melodramático que mantém o interesse do público na tela dos canais abertos, apesar da cada vez mais crescente diversidade dos canais temáticos por assinatura. Conteúdos que prometem projectar o melodrama para a dramaturgia via internet. Os portugueses ainda não adaptaram nenhum título brasileiro, até porque os argumentos são excessivamente presos ao contexto brasileiro, à crítica e caricatura da realidade brasileira, cultura que os portugueses entendem e admiram como a continuação da sua, mas da qual preferem manter certo distanciamento, de modo a não perderem o fascínio. Ouvi em Portugal a semana passada vários comentários sobre o final de Paraíso Tropical que foram ao encontro da percepção do público brasileiro. A algumas perguntas que não calaram, apesar do respeito e admiração do público de cá pelos autores, produtores e actores brasileiros. Tivesse sido transmitida em simultâneo, a reacção teria sido um momento marcante na história das telenovelas brasileiras em Portugal, por causa dos efeitos imediatos da interactividade. O contacto constante com a realidade brasileira, pelas telenovelas e não só, fez com que o público português observasse a necessidade de coerência, mesmo sem a exigir, como os brasileiros fizeram. A questão mais importante na última semana de Paraíso Tropical nem era “Quem matou Thaís?” e nem o porquê. E nem era uma questão, mas várias. Eu converso com as velhotas da aldeia viciadas em telenovelas brasileiras - só para criticar a “pouca-vergonha” dos amassos, que são só a fingir, ainda por cima - e converso com as meninas admiradoras do Bruno Gagliasso. E as perguntas são as mesmas.

Ao nível do público, me perguntaram se no Brasil é mesmo assim, se os ricos ficam pobres de repente, viram vendedores ambulantes e varredores de rua, caixas de supermercado, e se os pobres ficam ricos com uma ideia brilhante. Eu respondo sempre que, em termos de Brasil, num “continente” com mais de 150 milhões de telespectadores, as novelas imitam cenas da vida com luxo de realismo, mas a vida, por vezes ganha das novelas em termos de drama, romance e trama. A realidade brasileira é tão rica em histórias, que os jornais contam todos os dias, que por vezes quando a ficção tenta copiá-la, não consegue passar credibilidade. Tão diversas são as cenas brasileiras, que não sei porque as telenovelas repetem tanto alguns motes. Embora alguns valham a pena ser repetidos, como o do pioneirismo na ocupação dos espaços urbanos e criação de comunidades - com reconhecimento a Agnaldo Silva por Do Carmo e Juvenal Antena. O que mais me surpreendeu em Paraíso Tropical - e não só a mim - foi, para além da mobilidade social repentina mal explicada em algumas personagens, a excessiva preocupação de Gilberto Braga em traçar paralelos com a realidade factual brasileira, movimento que acabou caindo na caricatura grosseira. A problemática que ele pretendia espelhar e criticar, acabou passada ao público como um ingrediente divertido e normal, até aceitável da realidade. Temos a transformação de Bebel, que, presa e machucada, reaparece tempos depois, envolvida em um escândalo político - mais real impossível, pois todos os dias aparecem novas beldades envolvidas com políticos e escândalos no Brasil - mas, sem comentar sequer o que fez com o filho de Olavo, que ela esperava? Como? E o enterro dos irmãos shakespearianos Ivan e Olavo? Que vácuo! O filho do Antenor e da Lúcia, que nem no show do Milton Nascimento apareceu? Os gémeos da Paula, que nem estava grávida quando a Lúcia descobriu a gravidez, estes apareceram, numa cena romântica. Muitos fios soltos, até para o público português, que idolatra as novelas brasileiras e em boa parcela já conhecia o final através das revistas e da internet. Eu observei que para um autor como Gilberto Braga, de quem se ouviu certa vez que o seu único compromisso com a realidade era transformá-la, os paralelos neste argumento não funcionaram. Talvez porque o público ainda reconheça que a melhor maneira de retratar a realidade, na ficção, é usando o contraste. O público perdoou um final em que um vilão planeia matar a família e em que irmãos se matam entre si, mas uma jovem socialite virar gari e uma promoter virar camelô é mediano demais, caricato, de certa maneira arrogante em termos de punição dos maus. Há que ter mais cuidado ao se punir os maus com a pobreza, a loucura, a solidão, com a prisão, ou mesmo com a morte. Em se tratando de melodrama, é melhor radicalizar que ser subtil, ao se tentar fazer justiça - ou absolver - para satisfazer o público. Para não acabar por se fingir um realismo que fica a dever à realidade e se torna caricato e pouco credível.

Imaginem quantos finais de novela ficaram a dever ao público em coerência antes de existir a interactividade dos sites das televisões e da imprensa. Quando os milhares de cartas reclamando chegavam, e começavam a entulhar um compartimento qualquer da Globo, a novela seguinte já ia a meio e era campeã de audiência. Eu mesma já vi muita história mal contada em final de telenovela, sem ter chance de reclamar. O público português ainda não chegou o ponto de mudar o final de uma telenovela depois de ir para o ar o último capítulo, via fórum pela Internet como os brasileiros fizeram com Paraíso Tropical. Até porque, vindo do Brasil, tudo se explica e se aceita. Mas os canais da televisão aberta estão, aos poucos, horário a horário, substituindo a realidade brasileira pelos argumentos com motes do melodrama universal, dramaticamente bem vincados e que espelham a realidade de qualquer cosmopolita. Observando a televisão portuguesa, entre outros "termómetros" a conferir, já se nota um movimento de controlo ou equilíbrio desse fascínio pela cultura brasileira, meramente por saturação. O Portugal da Comunidade Europeia parece se querer cada vez mais cosmopolita, e não uma colónia cultural brasileira. Influência também tem limites e isto nada tem a ver com afinidades entre dois povos irmãos, mas na afirmação cada qual por cada qual daquilo que é seu.

Ana Lúcia Araújo

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